terça-feira, 10 de dezembro de 2024

São Tomás de Aquino em turismo

Tenho andado em estudo do «De Veritate» de São Tomás de Aquino. Por razões múltiplas, o meu estudo da filosofia medieval foi intermitente, não importa aqui quais. Mas, sempre que a ela volto, percebo até que ponto a nossa época macaqueia a filosofia medieval sem a conhecer.

 

Os lados da questão são conhecidos. De um lado, os que vêem São Tomás de Aquino como um iluminado e nada mais há que fazer senão seguir as suas fórmulas. Deste lado favorável outros insistem na dimensão existencial do pensamento tomista. Esta segunda versão só espanta quem faz a destrinça entre a dimensão conceptual e a existencial na vida, o que quer dizer que as têm ambas pobres.

 

De outro lado, os que dizem que o pobre coitado do São Tomás não conseguia destrinçar a filosofia da teologia, ou então oscilam a acusá-lo do maior obscurantismo, do enfado ou ainda de, apesar de lhe reconhecer a inteligência, ter tido o problema de ter nascido antes de nós e por isso não ser banhado da mesma luz redentora que nós (uma visão religiosa que não diz o seu nome...).

 

Da minha parte vou visitá-lo como turista, ou seja, de forma fresca, mas dando valor a coisas que os especialistas esquecem e os ignorantes, coerentes como são, ignoram.

 

Pertenço a uma geração que foi obrigada a nadar na palavra dialéctica, tanto quanto a desconhecia. Era um adjectivo necessário para passar em exames, e como todas as gerações colectivamente são no fundo submissas, a imensa maioria dos meus colegas a usavam como uma palavra mágica. Tinha um efeito: permitia passar de ano. E outro: para os mais afoitos permitia ter boas notas.

 

Mas a prática da dialéctica implica ter presentes ao mesmo tempo várias vozes, substantivas, viventes, opostas. Para vidas espirituais suportadas por escasso caudal, que esforço inglório ficcionar que a água pode irrigar vastos campos.

 

Ser aberto aos outros é um dos mantras enfadonhos da nossa época. Aberto aos outros é geralmente quem de qualquer forma não tem estrutura. Tão aberto que tudo o que entra sai da mesma forma. Da minha parte prefiro os que abrem os outros, os que mostram nos outros o que nem eles mesmos são capazes de mostrar. São Tomás despe sem pudor as ideias dos outros, poem-nas a nu. Mostra o que são enunciando o que estava implícito. Mas mostra o que são, não menos por mostrar no seu conjunto o que diriam se tivessem capacidade de ter um pensamento sistemático. Se São Tomás mente é por tornar os adversários mais inteligentes do que são.

 

Diálogo? Encontramo-lo sob o ponto de vista teatral em Platão, dizem os antigos que não manifestamente inferior em Aristóteles. Mas dialéctica sem noção de drama não existe, de qualquer forma. Antífonas, responsos em liturgia podem ser uma forma velada de teatro. São Tomás tem mais dialéctica em si que um mero observador da dialéctica, como tantos depois do século XIX. Se a época gostasse realmente de dialéctica teria forçosamente de gostar do Doutor Angélico.

 

Também incensamos os heterónimos. Pessoa tê-los-ia inventado, diz uma erudição provinciana. Bem antes de Pessoa, Kierkegaard, para quem o conheça. A questão é que em Pessoa como em Joyce participa tudo de uma imensa falta de sentido de humor, ou seja, de unidade. Em Kierkegaard esse sentido cómico está sempre presente. É talvez um dos maiores pensadores do cómico que já existiu. Se se pode dar ao luxo da comicidade é porque é profundamente cristão, e percebe por isso o que o cristianismo tem de cómico. Um Deus esvaziado e entregue por amor aos homens é visão cómica da realidade e por isso mesmo intrigante.

 

São Tomás não precisa de teorizar o cómico de modo tão intenso. Vive numa época em que o absurdo de um Deus sacrificado pelos homens é duplamente evidente: no seu absurdo e na sua verdade. Não precisa lembrar do que ninguém esqueceu. Por isso, não precisa de heterónimos. Faz tudo como se os tivesse, coloca várias vozes a falar ao mesmo tempo, porque sabe que a alma é complexa e não perde por esse facto a sua unidade. Não precisa, nem de invocar o cómico, nem de o esquecer. Pertence a um tempo que faz catedrais obscenas e peças satíricas. A sua época vive bem com o sentido de humor e o de unidade. Sabe que são só um.

 

Que a sua capacidade de criar diálogos seja real não me espanta. É um místico e um poeta. São sempre os pensadores mais profundos, o que se despem desta sua riqueza e se podem dar ao luxo de ser realistas e prosaicos. Os que o são por inevitabilidade nada mais podem despir, salvo se nos quiserem dar desagrado.

 

O que importa é que um ateu que queira ser sofisticado apenas teria de compilar as teses que São Tomás enuncia para as rebater, sem ter em conta que são destruídas pelo santo. Os actuais ateus são maus citadores do Doutor Comum. Usam apenas alguns dos seus argumentos quando teriam uma muito maior escolha e poderiam dar uma imagem de sofisticação maior que a que têm. Estreitos e amputados, querem fazer um mundo à imagem dos seus limites intelectuais. É o que chamam de um mundo melhor. Melhor para eles porque mais à sua medida e ao seu conforto.

 

Entendamo-nos. Não contesto a honestidade de alguns ateus, nem a profundidade das suas objecções. Lutam contra um cristianismo paroquial. Mas ignoram que, em certo sentido, luto contra ele bem mais eu que eles. A oposição não é a entre os inteligentes e os estúpidos. Nem sempre. Muitas vezes temos de perceber que objecções inteligentes são curtas e insuficientes e que muito deixam por aprofundar. Um ateu não preguiçoso carece da leitura de São Tomás. Para sentir uma repulsa bem legítima, porque sem o saber lhe seria purgativa.

 

As melhores anedotas sobre a Igreja Católica vi-as contadas por católicos. Os ateus riem-se das religiões, sobretudo da única que vêem como religião, a cristã. Mas raramente vi um ateu a rir-se do seu ateísmo, mostrando até que ponto a sua posição pode ser ridícula. É esse estreitamento da vida que os impede de defender em toda a sua glória o ateísmo. Teriam para isso de sofrer com a leitura de São Tomás. E isso excede as suas forças espirituais. Por isso, quando tentam colocar-se numa posição diversa da sua, começam pelo heterónimo sem humor e acabam sem posição nenhuma.

 

O actual ateísmo é uma nota de pé de página da obra tomista. Em vez de ter um pensamento sem limites, procura uma via redentora em dois ou três tópicos. Congratula-se com a escuridão desde que esta seja democrática. Se venho do esterco todos têm de vir. Não foi assim que começou o ateísmo. De início herdou o ideal aristocrático da grandeza. Mas não percebeu que não o conseguiria suster. O seu padrão é democrático. Todos vêm do lixo, no máximo podem almejar ao conforto, não ao heroísmo. O actual ateísmo revela-se a si mesmo como nudez chã.

 

Sem mística, sem poesia, acaba por ser sem pensamento. Obcecado em ter razão, em que tudo é lixo, quer de tudo fazer lixo para se sentir confirmado. Sem dialéctica, negando-se a ouvir outras vozes, outras opiniões. Cego, surdo e mudo, como um deus Shiva vive de destruição e identifica-se com o seu falo, já não biológico, mas simbólico. Porque para ele a biologia é apenas sinal de ontologia, logo, de opressão. A biologia o fez, a biologia o desfaz. Parodiando a redenção, é filosofia de imitação, própria para uma pequena burguesia habituada a viver de sucedâneos. E por cima destas ruínas eleva-se São Tomás, que desde a origem tinha razão, porque, ao menos ele, ouviu a razão dos outros.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

(mais)

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Os católicos são ridículos?

 

 


 

Sim. Quando são os idiotas úteis dos comunistas nos anos de 1939, dos maoistas dos anos de 1970 ou actualmente dos maometanos.

 

Sim. Quando falam em valores e solidariedade, conceitos, um burguês e o segundo aburguesado, em vez de falarem de virtudes e caridade. Conceitos externos e não como os conceitos cristãos e pagãos, sinais de irradiação de energia interior alimentada pelo Espírito.

 

Sim, quando dizem que o cristianismo é sobretudo uma moral, ignorando Santo Agostinho que dizia ama, et fac quod uis, ama e faz o seu que quiseres. Julgam que Nosso Senhor veio a esta Terra dar bons modos burgueses.

 

Sim. Quando dizem que são cristãos mas não dogmáticos. Ser católico é ser dogmático, o que todos sabem impediu descartes galileu e pascal de pensar.

 

Sim, quando de novo acham que o cristianismo é ser bonzinho e nunca falam de mística, de dogmática, de eclesiologia, de escatologia. Quando dizem que o que interessa é seguir Jesus e não lhes interessa a Santíssima Trindade. Religião sem conteúdo nem pensamento, território apenas de bons sentimentos, não se espantem de serem chamados de estúpidos.

 

Sim, quando acham que a democracia e os direitos do homem são a realização mais perfeita do cristianismo. E assim caem em duas heresias ao mesmo tempo. Idolatras de um regime político, não acreditam na comunhão dos santos, mesmo que a confessem da ponta dos lábios. A comunhão dos santos implica que a vida dos nossos antepassados é tão válida quanto a nossa, de igual valor os seus sofrimentos, ideias e limites. Não. Para o católico moderno ter anestesia no dentista, telemóvel e a democracia torna-o superior a São Tomás de Aquino e Santo Irineu de Leão, mesmo que saiba no íntimo que nem uma das suas palavras vá ser lembrada quando morrer.

 

Sim. Quando acham estar fora da História, protegidos pela rede de segurança feita pelos seus antepassados, rede que vêem como um macaco vê a natureza. Esteve sempre lá, não é preciso ser defendida.

 

Sim, quando dizem ignorar o nome dos seus antepassados que por mil e quatrocentos anos deram a sua vida para libertar a Europa do islão.

 

Dizem que não sabem quem são os seus antepassados e que a sua vida era lixo. E que se morreram isso é irrelevante. Contemplemo-los. Têm razão. Olhando para eles vemos que vêm de antepassados anónimos e sem valor. É a sua justiça que os condena.

 

Sim e sim. Porque compete aos católicos martirizar os católicos e mostrar-lhe que vivem sonâmbulos. É melhor ser acordado por mão exigente, mas amiga que por piratas que nos chamam para mercados de escravos.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

(mais)

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Feitos à imagem de Deus

 

Assim é. Lá temos mais um que se acha inteligente por recusar imagens antropomórficas de Deus. A nossa época dá felicidade a muitos porque lhes dá muitas ocasiões de se sentirem inteligentes, sobretudo mais inteligentes que os outros. O que é um sinal de alarme, podendo indicar que a verdade é a inversa.

 

O tópico de Xenófanes aparece entre os que têm propensões mais intelectuais. Xenófanes dizia que os gregos deram forma humana aos deuses, mas não perceberam que se os animais tivessem deuses dariam forma animal aos deuses. Xenófanes teria as suas qualidades, mas era algo provinciano. Porque se esqueceu que os egípcios eram humanos e deram aos seus deuses formas... de animais.

 

Também os que brandem o argumento do antropomorfismo mostram assim o seu provincianismo. Nem sempre fazemos os deuses à nossa imagem. E por isso é preciso pensar duas vezes antes de acusar a teologia de antropomorfismo. Não é pelo facto de os polacos venerarem uma Virgem Negra que projectam na santidade o que são. Para quem nunca viu um polaco seria bom espreitar alguns para se perceber a ironia.

 

O problema é que o argumento de antropomorfismo deixa satisfeito quem sente ter capacidade de abstracção e não acredita por isso num Deus velho com barbas brancas. Capacidade de abstracção de jornalista, entenda-se, e desde a metade do século XIX a de alguns biólogos. Não são o pináculo na matéria, não aconselharia como modelo.

 

O homem não faz Deus automaticamente à sua imagem. Prova são os deuses teriomórficos, os deuses de formas difusas, híbridas, ou em forma de bétilo ou planta. Os gregos tinham deuses antropomórficos os árabes adoravam calhaus. Deuses mais abstractos? Seja. Não é por isso que os gregos eram incapazes de poesia ou criação racional. Alguém que me aponte um teorema beduíno ou uma epopeia sarracena... Tanto os gregos como os indianos, que têm ambos deuses antropomórficos, produziram arte, literatura e matemática como mais nenhum povo na Antiguidade. Talvez fosse altura de o rapaz com mentalidade de jornalista começar a pensar... Se lhe for possível.

 

O problema é exactamente o inverso. Quando o homem quer pensar num Deus mais complexo o risco é o de cair no antropomorfismo. O cidadão comum da nossa época, que se sente sofisticado por só admitir uma visão abstracta de Deus, o que vê ele? Uma coisa difusa, de fronteiras indefinidas, confusa. Porquê? Porque para ele são assim as abstracções. Uma antropóloga que conheci na adolescência disse-me um dia: para mim as ideias são coisas mortas. Ao que eu lhe respondi: sim, menina, na tua cabeça.

 

São os mesmos que dizem ter uma vivência carnal da vida que só admitem a hipótese de um Deus abstracto. Ou seja, morto, sem viço. Como as suas abstracções. A sua vida não é contraditória. É só tonta. Por isso, não percebem que são os povos mais sofisticados que procuram uma imagem viva e pessoal do Deus. Platão chamava-o de o Vivente e Pai. E quanto a ideias abstractas tenho mais confiança em Platão que num jornalista americano. 

 

Santo Irineu de Leão merecia que se falasse muito mais dele. Mas sendo telegráfico, diria que percebeu algo muito simples: que todas as heresias, e em boa todas as religiões falsas são projecções. O homem projecta-se na divindade, quere-a à sua imagem.

 

Não que faça deuses antropomórficos sempre. Mas quer deuses que aceitem a vingança, mesmo que com limites. Que odeiem os descrentes, condenem os que não nos agradam. Mais importante que a sua imagem aparente são as suas motivações.

 

Por isso, torna-se impossível ao ser humano conseguir a suprema conquista espiritual que é a de um Deus pessoal, apenas acessível aos povos mais sofisticados, sem cair ao mesmo tempo no antropomorfismo. Não tanto o do Deus velho de barbas, mas de um Deus que odeia e quer vingança.

 

Os sofisticados da nossa época têm dificuldades grandes e não percebem que z verdade cristã é exactamente a inversa. Não a de um Deus à imagem do homem, mas de um homem à imagem de Deus. O que isto implica? Que se esvazie de vez das suas projecções e seja ao mesmo tempo capaz de se confrontar com um Deus pessoal. Que tenha a suprema capacidade de abstracção de perceber a vida das suas ideias e que essa vida não vem de si. Mas essa capacidade de abstracção o transeunte jornalístico da nossa época não o tem. Cansa-se depressa. E depois de pensar a sua pequena abstracção senta-se. Não viu grande coisa. É evidente. É a si mesmo que se viu.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

(mais)

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Dançando em pares

 

O velho Sachs fez já há muito tempo uma observação que hoje em dia anda esquecida. A Europa foi a única cultura em que o homem e a mulher dançam em pares. Nas culturas não europeias como a turca, a árabe e muitas outras orientais os homens nunca dançam com as mulheres. Noutras há grupos de homens e grupos de mulheres que dançam cada um de seu lado. Noutras ainda homens e mulheres dançam em conjunto, mas nunca formam pares.

 

Na Europa temos danças de conjunto em que se formam pares ou danças de pares, um homem e uma mulher.

 

A primeira verificação é civilizacional. A única civilização que desde há milénios pratica a monogamia e a teoriza é também a única que cria pares na dança. Este é um símbolo e um reforço da monogamia.

 

A segunda é vivencial. Quem já dançou em pares como eu sabe a experiência de dois corpos que falam entre si. O facto de haver regras não impede a espontaneidade nem a variabilidade. Bem pelo contrário é a única situação em que um homem e uma mulher fora do sexo podem ter uma comunhão corporal profunda e fora do casamento a podem ter enquadrada em liberdade. É o oposto da violação e da prostituição.

 

A dança de pares na Europa seja em puros pares ou pares gerados por um grupo não é acto de brutos ou experiência caótica. Está codificada. Há boas razões para isso. Os corpos estão sujeitos à gravidade e à inércia. O mais natural é que sejam trôpegos, deselegantes. Na natureza raras vezes se vê elegância, salvo no predador que caça e na presa quando dele foge. A elegância é sempre dramática na perspectiva da biologia, e sempre improvável na da física.

 

As danças de salão nas suas várias versões na História europeia mas também o ballet são a luta contra estas desgraças. Ter corpo sem ser desajeitado e forçado pelo peso, ter harmonia sem desafio de morte é tudo menos evidente.

 

Ora o século XX trouxe a tragédia não apenas nos campos de batalha mas também na dança. Quis superar a dança tradicional. O que fez? Umas vezes aboliu os pares, voltando a criar conjuntos ou solos, retirou outras os códigos. Outras vezes criou novos códigos que se resumem a duas ideias. O corpo tem peso, o corpo deixa de ser humano. Onde a dança clássica impõe a elegância dos pés das mãos do corpo surge agora o trejeito, o espasmo, o brusco, ou o diluído. Onde havia humanidade há agora a máquina, com os seus movimentos repetitivos, angulosos.

 

No fundo tudo se funde num só princípio. Desde os anos 60 os pares dissolvem-se, e um homem e uma mulher se dançam aparentemente juntos apenas se ligam pelo olhar. Os seus corpos não estão unidos. E se se tocam cada um pretende tomar a iniciativa. Dançar junto significa macaquear o outro ou dele se destacar. Já não ter um fraseado comum.

 

Na imagem pequeno burguesa do Maio de 68 tudo vale para fugir ao humano. Imitar as pedras, as máquinas, os animais, os elementos da natureza tudo é melhor que aceitar o seu destino humano menor. Prefere dançar como um porco, usando palavras como mística ou revolução. Tudo é válido desde que possa deixar de ser o que é. Dança para se desencontrar, com a mesma finalidade escreve teoriza ou ensina. Num mundo em que andam todos desencontrados sente-se menos confrontado com a sua menoridade. Todos decaem. Ou seja, todos se aproximam da sua origem.

 

É evidente que é fácil criticar o ballet clássico e dizer que é ridículo. Por vezes a música não é da maior profundidade nem o seu roteiro. Curioso critério, sublime exigência. Muitas obras-primas são feitas de partes medíocres. Os Lieder de Schubert assentam em grande parte em poesias medíocres e isso em nada os estraga. Mozart fez a música mais sublime numa história estúpida como a da Flauta Mágica e estragou sob o ponto de vista dramático o Don Giovanni com a última cena moralista sem em nada ter estragado a sua beleza musical.

 

Da mesma forma no ballet clássico histórias podem ser tontas, algumas músicas delicodoces sem estragar em nada a beleza da dança. O contemporâneo não vive sem a técnica do clássico, é lugar-comum. Mas não vive igualmente sem o seu sentido de arte. Seja opondo-se-lhe, seja mimando-o. A dança popular não é menos rotineira e apenas consegue ser mais grosseira. Gente ordinária abana a anca para chocar o burguês: a sua família. Porque gente com outro nascimento boceja e não se choca.

 

Um fulano vestido com umas meias coladas à sua pele dançando com uma mulher usando um tutu que parece um folhado... Nada mais simples de ser criticado, nada mais evidente objecto de chacota. Pode-se dizer o mesmo de uma orquestra, conjunto de criaturas sentadas à espera de ordens de maestro, gente que inquina as mãos e o nariz com cheiros de tinta enquanto pintam quadros, os que arriscam uma doença respiratória por ciselarem a pedra. Tanto na vida humana é ridículo... Basta pensar num pai babado enquanto olha para a sua filha recém-nascida e viscosa. Se o critério para recusar algo for o ridículo aparente que se proíba o sexo, que raras vezes é artístico à vista.

 

Um homem e uma mulher que dançam podem obedecer a regras, pode haver um a conduzir e outro a sugerir. Mas quem teve essa experiência sabe que a sincronia dos corpos em que se adivinha a vontade do outro é uma das vivências mais libertadoras que um ser humano pode ter. Os pés de chumbo, os imitadores de macacos e máquinas, os cultores da grosseria não podem saber que vida é esta. Não lhes foi dada, fazem por isso a apologia da que lhes é possível. A vida que não viveram tem dois nomes: livre e digna.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

 

(mais)

segunda-feira, 8 de abril de 2024

A apologética muçulmana

 


Na época actual e no dito Ocidente há dois traços que marcam a apologética muçulmana. Digo no Ocidente porque em países asiáticos como a Turquia a necessidade apologética não é inexistente mas diversa.

 

Dois traços: a razoabilidade, os limites lógicos, se se quiser, e a numerologia.

 

A razoabilidade e a lógica não são a mesma coisa, mas na apologética muçulmana identificam-se e isso diz algo da sua antropologia mais que da lógica ou da razoabilidade. Entendamo-nos. Como se vê um muçulmano? Não é filho de Deus, é mera criatura. Não é amado por Deus. É absurdo achar que Deus ama seres tão infinitamente distantes d’Ele. Deus não fez nem nunca fará nenhum sacrifício por ele, como é evidente. E Deus não fala nem nunca falará com ele. Mesmo a Maomé foi um anjo que falou.

 

Um texto místico do islão diz: entre Mim e ti não há caminho. Exacto. O homem é uma mera criatura, eternamente sem ouvir Deus nem com alguma possibilidade de alguma vez O ver.

 

Por isso se compreende que para o muçulmano seja absurdo um Deus que ama o homem e que Se revela na Sua intimidade como relação. Deus nunca Se revela, é o absolutamente Outro. Não nos ama, não faz por nós nenhum sacrifício. É razoável, e por isso parece lógico.

 

O problema é que o homem actual do dito Ocidente tem dificuldade em destrinçar a razoabilidade da racionalidade. As teorias matemáticas dos transfinitos nada têm de razoável, mas são perfeitamente racionais. E como o homem moderno tem pouco contacto com o infinito, deixa-se levar por algum cheiro desta argumentação.

 

A outra dimensão da apologética muçulmana no Ocidente é numerológica. A visão numerológica da teologia não é liminarmente ilícita. Santo Agostinho tinha alguma tendência para isso. E em nada essa tendência lhe estragou a lucidez. Ajudou-o mesmo a perceber a Trindade. Não é mau. Mas era guiado por um forte sentido da Incarnação. E isso conteve os efeitos secundários do seu lado pitagórico. Se bem me lembro, é o próprio papa Bento XVI que o chama de pitagórico.

 

O problema de uma visão meramente numerológica é precisamente a da sua fragilidade racional. Em primeiro lugar, assenta muitas vezes em relações matemáticas que são triviais, outras vezes inevitáveis ou quase, em geral irrelevantes sob o ponto de vista estatístico ou matemático. E mais grave ainda, irrelevantes sob o ponto de vista teológico. O número de vezes que aparece uma palavra, as proporções entre o número de palavras e um capítulo podem ter alguma relevância estilométrica, quando muito, mas duvidosamente dizem algo sobre a revelação divina. Salvo se se entender que o divino é trivial.

 

Mas é também sintomático da incultura histórica dos teólogos muçulmanos. A ideia de crítica do texto, de uma História da tradição, que de modo mais ou menos desenvolvido aparece na teologia europeia, é-lhes estranho. Falar de estratos de um texto, das suas variantes, é-lhes interdito sob o ponto de vista teológico e inconcebível sob o ponto de vista intelectual.

 

No fundo, uma e outra tendência estão ligadas. Identificar razão e razoabilidade é mostra de um pensamento provincial, que esquece que a razão tem múltiplas manifestações, a matemática, a histórica, a filológica, a biológica, entre outras. E são muitas vezes surpreendentes, ou seja, bem pouco razoáveis. 

 

A ideia de um Deus transcendente e sem comunicação connosco tem como efeito só aparentemente paradoxal que apenas se admite um Deus conceptualmente razoável, ou seja, comezinho, provincial, medíocre. Um e três são coisas diferentes, um Criador não pode amar a criatura porque isso seria fetichismo, um texto sagrado não pode ter uma História. O mundo transcendente não dialoga com o humano, na melhor das hipóteses dá-lhe ordens, imposições, destinos férreos. Tudo isto é razoável, e como dizia o outro: tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado.

 

A apologética tenta apresentar o islão como uma religião razoável, esquecendo que à sua volta dois monstros acossam essa mesma apologética. Os actos pouco razoáveis que se praticam em nome do islão, e o facto de a razoabilidade ser uma limitação. Da razão humana, mas também da própria concepção de Deus.

 

No fundo também, revelam a esterilidade de um pensamento, fracamente matemático, sem capacidade crítica do texto, sem capacidade de verdadeira análise histórica. Erudição despida, sem capacidade de criar nexos de ligação ou um pensamento vivo. Exactamente como a maioria das teses de doutoramento. Por isso, se não atraem os cientistas, não os chocam, e se não dão a volta à cabeça dos das humanidades, estes já estão habituados a textos enfardados e sem viço. Em suma, sentem uma afinidade mole com os apologetas maometanos. Mas como as suas afinidades são sempre moles, sentem-se em casa, uns e outros.

 

Se não suscitam o imediato ridículo é porque acendem as luzes moles de uma fraca afinidade com o que o dito Ocidente promove hoje em dia. Em vez de um pensamento duro, predador, heróico, sem piedade, como o de Newton ou Pascal, encontram um pensamento que se diz fraco com Vattimo e só nessa confissão tem uma ponta de verdade.

 

A apologética maometana só não é objecto de ridículo como o seria até à II Guerra Mundial, porque entrou numa época em que se cultiva a mediocridade, o sentencioso, uma abertura invertebrada. O que tem de cómica só não é percebido porque a cultura da época é tristonha e se sustenta, não de alimento saudável, mas de ansiolíticos e antidepressivos. Que exista neste estado é a vergonha dos de Mafoma. Que seja recebida por nós é a nossa vergonha. Nos templos do pensamento há vassouras. Servem para limpar o lixo que entra e nem no fanum deve ter direito de cidade.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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quinta-feira, 7 de março de 2024

Ser e dever ser

 

Quando andava na faculdade ouvia uma ladainha sempre repetida que opunha o mundo do ser ao do dever ser. O mundo do ser era descartado e dedicávamo-nos ao mundo do dever ser. Esta obnubilação da ontologia era apenas o primeiro problema. Bem maior era o de pessoas que se diziam cristãs sentarem os seus pouco estéticos traseiros sem pensar o que tinha de artificiosa a distinção. Para um cristão o auge do ser e do dever ser é Cristo. Mas esta era uma ideia que não lhes passava pela cabeça.

 

A ideia de dever pode existir em várias gramáticas. Mas entre os gregos e os romanos era bem mais difusa. «Officium» em Cícero, sem dúvida. Mas o verbo é usado sobretudo no latim medieval. No latim clássico usa-se o gerundivo, que se traduz como dever. Em vez do medieval «distinguere debemus» surge o muito mais elegante «distinguendum est». A própria construção verbal com o verbo «esse», ser, mostra que a visão romana é antes do mais ontológica. Está-se a falar do que é. Em vez de se falar em dever talvez se devesse falar de tarefa. É tarefa distinguir. Muito melhor assim.

 

Uma coisa é uma tarefa que está à nossa frente e parte da nossa essência, outra coisa é um dever que se pode mesmo colocar no centro da alma, mas que se opõe à realidade. Uma tarefa é uma realidade que decorre do que somos, um dever opõe-se ao que o mundo é.

 

Não faço jogo de palavras. Não é por mera ocasião que quem mais teoriza essa distinção é Kant. Kant é um imenso génio ao estilo medieval, que faz obras de grande relojoaria como os escolásticos, em que da primeira à última palavra tudo está concatenado. O vulgar não percebe até que ponto ele é medieval na sua consistência lógica e por isso sente-o como moderno. E sente-se moderno quando o lê. Ora, o que se chamavam a si mesmo os medievais? De medievais? É evidente que não. Chamavam-se a si mesmos de... modernos.

 

Kant permite aos seus leitores serem medievais sob a condição de abdicarem da ontologia. De início como modo de pensamento. De seguida, nos seus sequazes, mesmo como aspiração. E ainda mais os seus leitores se sentem modernos por terem sido desapossados. Mas tiveram alguma vez posses?

 

As obras éticas de Aristóteles mostram a mesma frescura. Não se diz: deves fazer isto. Mas: olha o que fazes e vê as consequências. As acções vêm do seu autor, são expressão do que ele é, as suas consequências são postas no mundo. É evidente: Aristóteles não é um simples moralista. É um homem com uma gigantesca capacidade ontológica.

 

Quando vejo alguém que só fala de moral e valores penso que é sempre um duplo sinal. De amputação intelectual. Incapaz de ontologia, escuda-se no dever ser. De reles origem, quer primar por uma nobreza interior insindicável. Sou melhor que os outros apesar de ser um esfacelo e um burgesso, é o que está a dizer. O mundo moral é invisível e insindicável, bom refugio para os desgraciosos.

 

Não é por coincidência que segue, mesmo que não queira, os pós-modernismos. O exercício de dissolução do ser que lhe impõem não lhe dá nem trabalho nem sacrifício. Pronto a vestir é o seu mundo. Já tem tão pouca substância e de tão pouco valor que lhe é fácil abdicar de coisa tão ligeira e de tão escassa valia.

 

O grau mais reles deste pensamento é o dos que dizem que não têm identidade, que são cidadãos do mundo, que as fronteiras são apenas as dos direitos do homem. Como acham que o mundo do dever ser se configura livremente, acabam por achar que o mundo realmente importante é o da sua fantasia. E como também esta é fraca, tudo o que lhe agrada à primeira impressão é colocado neste mundo.

 

A questão é que nada nesse seu mundo de fantasia tem consistência. Diz não ter identidade, mas passa a vida a defender a identidade de outras culturas religiões e modos de vida. Presunçoso, considera-se superior aos outros, enraizados, e ele sem raiz. Os que vê como seus concidadãos são os que falam um inglês sem Pope nem Donne como ele, como ele usam a Internet, e como ele defendem causas ambientais. Incapaz de pensar uma real diferença, julga-se universal porque vê o mundo à sua medida: chão e uniforme. E as fronteiras delimitadas pelos direitos do homem consolam-no por lhe permitirem atingir uma universalidade sem ontologia.

 

Um mundo moral, o mundo da sua fantasia, um mundo em que aceita que nada é perene. Como ele, é tudo caduco, previsível, enfadonho, sem aventura. A sua leitura não é a epopeia nem o texto sagrado. Mas o hipertexto. Ou seja, um texto prenhe de possibilidades nunca realizadas, mas de conteúdo nulo. Celebra-se. E é bom que se celebre. Que depois da sua morte ninguém o vai fazer.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Devemos desprezar Mandela?

 

 A resposta é obviamente positiva e não sou eu a dizê-lo, é a nossa época em coro unânime.

 

Dizer que a África do Sul se transformou num país corrupto e violento, ou que perdeu importância relativa na economia africana não é argumento. Muitos homens grandes deixaram bem menores depois da sua morte. Não são os chefes menores da Academia que diminuem a grandeza de Platão. A questão é bem diversa.

 

A nossa época diz-nos que devemos desprezar Mandela, Gandhi e Martin Luther King. Di-lo, mas não sabe que o diz.

 

A resistência pacífica é algo de precioso? Não, diz-se hoje em dia. Não foi Gandhi o criador da resistência pacífica, mas antes os mártires de Córdova do século IX. Cristãos sob o domínio muçulmano revoltaram-se contra ele. Com armas? Não. Saindo à rua e dizendo que eram cristãos. Como os trata a historiografia liberal? Como provocadores que no fundo mereceram ter sido mortos pela espada, e outros crucificados.

 

Alguém os invoca hoje em dia? Não. A resistência pacífica não interessa ninguém hoje em dia. O importante é ter lutado contra os impérios europeus. Os argelinos que castraram e mataram europeus são vistos como heróis, tanto quanto Gandhi. A invocação da resistência pacífica é apenas um pretexto. Com ou sem violência, alguém é bom apenas se se tiver oposto aos europeus. A originalidade de Gandhi é assim nula, como mostrei, e irrelevante, como a nossa época pensa, mas não diz.

 

Sim. A admiração por Gandhi destruída pela nossa época. Mas Mandela, e Martin Luther King? A nossa época não os admira? A resposta é negativa. Apenas lhes dá uma caução provisória, até arranjar outros que os substituam.

 

Como posso afirmar isto? Como não percebo a admiração tão sincera e tão proclamada em relação a eles?

 

Também aqui a demonstração é simples. Quando era criança lembro-me bem de quem eram os heróis do humanitarismo. Florence Nightingale e Albert Schweitzer. Eram sempre dados como exemplos máximos dele. E agora? Quem cita Mandela, King e Gandhi nunca refere os primeiros. Porquê? É que se admira o humanitarismo deveria não esquecer os grandes humanitários. E, no entanto...

 

A época quer mortos frescos, prontos a admirar. A substância do que alguém fez, o seu mérito não tem importância. A sua admiração tem um prazo de validade. É pela mesma razão que é indiferente aos mártires de Córdova, a Florence Nightingale e a Albert Schweitzer que a sua aparente admiração por novos heróis se mostra oca.

 

No século XXII irão admirar a Kakaká e o Lelelé e se alguém lhes falar em Mandela vão mostrar a total indiferença que sentem por Mandela. A sua admiração é de consumo, como um iogurte: caduca.

 

Nesse século XXII será o meu equivalente que lhes vai lembrar Mandela e os mártires de Córdova. E lhes vai lembrar que, nada admirando de perene, deixam a nu o vazio da sua admiração. E nessa altura quem falar de Mandela vai ser desprezado. Precisamente: pelos defensores do humanitarismo.

 

Eis como esta época me ensinou que Mandela, King e Gandhi são desprezíveis. Porque só os admira sob a condição de os poder livremente substituir na sua memória. 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

 

 

 

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terça-feira, 30 de janeiro de 2024

A questão judaica

 

 

 


Vamos por partes. Só vendo os vários efluentes podemos conhecer bem o rio. Bem sei que é tema perigoso. Os hábitos tribais e provincianos dos europeus transformaram em tabu a questão. Época estreita esta. Rasguemos um pouco os seus antolhos.

 

Primeiro curso de água: uma ou outra série de televisão, filmes de Hollywood, uns documentários e, para os que se julgam mais dotados, alguns livros. O holocausto foi um horror, o anti-semitismo um outro horror. Sem qualquer margem para reflexão. Num nível mais presunçoso há mesmo os que vão mais longe no tempo e dizem que o anti-semitismo é de origem cristã. Neste caso, e só quando tem defeitos, a nossa civilização deixa de ser por milagre judaico-cristã e passa a ser apenas cristã. Caprichos...

 

Este quadro acabou de vez com o anti-semitismo? É que se o diagnóstico fosse profundo e certeiro não teríamos dados largos passos no caminho da terapêutica? Uma árvore conhece-se pelos seus frutos. E os desta são escassos e de pouco alimento. O anti-semitismo pulula na nossa época.

 

Segundo curso do rio. Dois livros. Em 1844 um de Marx. Em 1944 um de Sartre. De comum um e outro: contra a ideia da Revolução Francesa do homem universal. O problema judaico só se resolve com o homem concreto na sua situação concreta. Esconder que há um judeu, em suma, esconder a essência (sim, a essência, os marxistas clássicos têm uma metafísica) é eludir o problema. Esta é a boa tradição marxista contra a visão burguesa do homem universal, a de Marx, a de Labriola e mesmo Sartre. 

 

Este segundo curso tem os seus méritos. Não é por o judeu ser integrado na cidade e tratado igualmente com os outros cidadãos que desaparece o problema judaico. Nisto os marxistas tinham razão. Não tinham o fetiche da lei. Ainda hoje em dia um ministro pode ser igual perante a lei mas de reles semblante visível a todos. A lei nada cura. E nisto o judeu não é diferente dos outros. A lei apenas nivela o que pode. Não destrói as desigualdades naturais. E é evidente que há graus de honestidade diversos. Labriola, o mais aberto, não pode ser comparado ao oportunismo de Sartre. Marx omite muito, mas ao menos não encobre com fórmulas mágicas como Sartre.

 

A outra corrente é a popular. E como tudo o que é de baixo nível faz encontrar os extremos pelo lado errado. Um dos extremos é o do filo-semitismo popularucho. O das séries de televisão e quejandos. Os judeus são vítimas, foram sempre vítimas e são credores eternos em relação ao resto do mundo. O outro extremo é o do anti-semitismo popularucho. Os judeus são eternos culpados façam o que fizerem. Entre turcos e muçulmanos em geral prevalece este movimento. 

 

Nem uma nem outra força acabaram com o anti-semitismo. Declarar que um povo é isento de pecado original é tão perigoso quanto afirmar que dele tem o exclusivo. Porque de uma forma ou de outra cria uma ligação especial entre esse povo e o pecado original. Teria sido bem mais sensato ver o que de trivial tem esse povo para se dissolver da trivialidade da História. O problema é que ninguém parece querer que seja trivial. Tanto quem gosta como quem não gosta. 

 

Uma outra corrente assenta numa dimensão algo intelectual, mas em modo menor. A do sionismo e do anti sionismo. Algo menor porque criada por intelectos bem inferiores a Marx ou Labriola. Por jornalistas políticos, para dizer tudo. Theodor Herzl é uma personagem bem curiosa, com todos os clichés contra os judeus - tanto ele como Sartre falam da fealdade dos judeus, e Sartre bem sabia de fealdade. O criador do sionismo não achava que o povo judeu fosse belo ou particularmente inteligente, mas queria um lugar seguro para ele. E conseguiu a simpatia do Kaiser Guilherme II da Alemanha e do rei da Itália. De certa forma quem mais banalizou o povo judeu foi quem mais efeitos obteve no longo prazo. O anti sionismo alimenta-se, enquanto mero anti sionismo e não mero disfarce do anti judaísmo da mesma ideia de que o povo judeu é banal.

 

Uma forma especial desta corrente popular é também dupla. A extrema-esquerda e o islamismo parecem ser completamente opostos. Afinal, a extrema-esquerda não odeia a religião? Sim. Odeia a religião. A única que consegue ver como verdadeira. A cristã. As outras são deliciosas expressões de outras culturas. Vazias de sentido, mas ao menos formas legítimas de existência. O que os une é muito mais. Um pensamento plebeu que nega toda a forma de aristocracia, uma obsessão com a violência verbal e física, com a expressão universal absoluta e ao mesmo tempo destruidora. Uma baixa origem e baixos intentos.

 

Sendo ambos filhos do folclore urbano tendem ambos a ficar satisfeitos com a ideia de que os judeus são todos capitalistas, actuando por detrás da cena. Não é por acaso que em países asiáticos como a Turquia o protocolo dos sábios de Sião faz desde há muitas décadas sucesso. Não tendo participado dos arcanos do poder acham que todo o poder é arcano. O que os separa é no fim absoluto e bem se sabe que num dia em que os islamistas tiverem poder os primeiros a ser mortos serão os de extrema-esquerda. Mas é o Estado liberal que permite a sua união. Precisamente por não permitir que se matem uns aos outros e esconder o facto de que essa é a história final. Triste comédia de enganos, como todas terminará em tragédia... ou farsa.

 

O fundo da questão judaica é eludido por quem detesta e por quem adora os judeus. A Europa é o único continente que corresponde a uma cultura. Não há uma cultura africana. Um egípcio não se sente irmanado com um quimbundo. Não há cultura asiática. Um turco e um chinês não têm a mesma cultura. A Europa era o único continente mono religioso. Toda a Europa era cristã até que há trinta anos se decidiu que devia ser multicultural.

 

A questão judaica na Europa só tem acuidade secular porque os judeus tradicionalmente são o único elemento de multiculturalismo na Europa. Irrelevantes sob o ponto de vista demográfico, e até ao século XIX irrelevantes sob o ponto de vista económico político e cultural. Não há sinagogas nas praças principais das capitais europeias, não há famílias reais judias, nem famílias nobres judias. As nobilitações do século XIX nunca geraram dinastias reconhecidas pela nobreza de sangue. E ainda hoje em dia a antiga nobreza inglesa, de origem franco-normanda não reconhece as raras famílias judias nobilitadas.

 

Enfim, longa demonstração a fazer noutro lugar. A questão no caso é outra. A questão judaica é o único sintoma secular multiculturalismo na Europa. Todos os sistemas multiculturais em todas as épocas em todas as civilizações foram de violência cíclica e de reserva mental. O que a Europa está habituada a pensar em relação aos judeus já a Hispânia muçulmana, os impérios árabe e turco e o sassânida conheciam em relação aos judeus e aos cristãos.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Ho fame

 

 


Alessandro Manzoni é um dos meus autores preferidos. Para explicar a razão levaria aqui muito tempo. O que importa é que, por uma ligação de afecto ou o que se queira chamar, gosto de atravessar sempre que possível a Via Alessandro Manzoni em Milão. Sai-se da Galeria de Victor Emanuel e vê-se em frente o Teatro della Scala. Quem gosta de ópera já sabe do que falo.

 

É uma rua rica numa zona rica numa cidade rica. Mesmo no início da rua, do lado direito, vi por quatro dias um homem que dormia na rua e parecia não sair de lá, de dia ou de noite. Sempre coberto com um édredon, deitado quase sempre, uma vez vi-o sentado a olhar com concentração um ponto, não sei o quê. 

 

As palavras que com ele troquei são agora irrelevantes, e que Deus me julgue por que só Ele pode conhecer. Mas das várias vezes que passei por ele vi o seu olhar vazio, talvez sem motivação, ou sem estímulo. Ao seu lado uma cartolina que dizia em capitulares a frase mais simples: HO FAME. Tenho fome.

 

Numa rua rica num bairro rico num país rico num continente rico. Tenho fome. Notoriamente italiano, portanto europeu, portanto responsável pelo colonialismo e pela exploração dos outros povos. Um porco explorador sem redenção. Tenho fome. E pensei como uma Europa rica acha que já resolveu o problema da sua pobreza e pode abandonar-se às delícias da miséria alheia.

 

Tenho fome... Chesterton dizia que se queríamos ver real diversidade devíamos apanhar o metro e sair na estação seguinte e não ir à outra ponta do mundo. Compreende-se. Quem precisa de andar centenas ou mesmo milhares de quilómetros para ver a diversidade apenas mostra que não tem subtileza. Só lê o que aparece em letras garrafais. Não percebe a importância fundamental das diferenças subtis. Precisa do tamanho gigante para ler um texto. É um destituído, em suma.

 

Tenho fome... A mensagem cristã é a de amar o próximo, não a humanidade. A primeira é de Cristo, a segunda é de Victor Hugo. Alguém que não veja a diferença entre um e outro mais uma vez mostra que não é subtil. Curtius dizia que Hugo era uma cascata de banalidades e em parte tem razão. As suas proclamações são actos de teologia definhada em alma de merceeiro. Não era um génio do pensamento. E por isso é fácil de seguir por definhados do pensamento como ele. De novo, os bons sentimentos...

 

HO FAME. Os que se ocupam do Terceiro Mundo e não vêem a miséria à sua volta, os que se consideram globais, ou seja, e em confissão plenária, rotundos, são apenas os descendentes de pensadores de taberna, para quem o destino do seu próximo é irrelevante, e a defesa dos fracos apenas prevenção contra os ataques legítimos ao que são. Afirmando-se defensores dos fracos, pavoneiam uma santidade que não têm e afirmam ninguém ter.

 

Tenho fome... O que não perdoam ao próximo que tem fome concreta e não faz parte dos seus pobres quadros conceptuais é que exista e que seja ao mesmo tempo uma metáfora do que são. Uma miséria indiferente à miséria alheia que precisa criar o espectáculo da preocupação quando a sua verdade é apenas a de destituídos. Já não de pão, mas de espírito.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 10 de novembro de 2023

O paraíso platónico

 


Quem confia nos deuses? Sendo incomensurável, quem pode ter a certeza do que nos desejam e, pior ainda, das suas limitações? Que promessas nos fazem? Que promessas podem cumprir? O homem moderno já superou isto tudo porque usa telemóvel, telecomando e televisão, tudo com o prefixo de «longe», porque para ele tudo está longe como o pensamento, e em consequência desencarnado.

A imaginação humana, raramente consoladora, se lhe vemos a face insuficiente, dá-nos consolações coxas. Ou há paraísos para homens, em que as mulheres têm como destino estar de pernas abertas para os satisfazer, ou andamos todos aos saltinhos a pular uns com os outros e passamos a ter o arcaboiço intelectual de cabritinho, enquanto entoamos laudas aos direitos do homem, ou somos atirados à frigidez das estrelas. É o que homem pode em geral, e é bem pouco, porque o muito que podem alguns poucos não sobra para atingir os céus impunemente.

E eis um dos muito poucos que ousa dizer coisas sobre o paraíso. Ou melhor, sobre a sua entrada e os sinais que dele conseguiu receber. Não entrou no paraíso, nem descreveu a eternidade porque esta levaria uma eternidade para o fazer. Esse mesmo: Platão. Um dos raros chamados de divino, seja por hábito, seja por real admiração, seja por uma lucidez que chama os nomes que podemos chamar a alguém que soube dar nomes a muitas coisas.

Não se pode exigir mais da perspectiva humana. Buda fez algo muito diferente, e era também apenas humano. Mas a sua opção foi não descrever, ou fazer-nos ao menos acreditar que não descrevia. Aristóteles não descreve, mas apontou com conceitos, ou seja, com filhos do sentimento, o que seria o mundo da divindade. E outros fazem genealogias, como Plotino, e em excesso Proclo. Veja-se onde pode ir a imaginação humana. A dos grandes, dos muito grandes.

A entrada, porque não é do seio paradisíaco que fala, a entrada é um grande julgamento. Faz sentido. Também as punições e as recompensas. A mitologia grega já as tinha e muitas religiões as tinham. É de filósofo não ter medo da religião. E dessa entrada vêm sinais do que é o paraíso. Quais são esses sinais?

«Ardieu não veio, nem virá mais aqui. Entre os espectáculos terríveis a que assistimos também este nos tocou» (Rep. 615d) (PLATONE, Repubblica, Bompiani, Milano, 2019, pp. 1056-1057). Sem qualquer possibilidade de redenção. Definitivo. Para quem sorrir perante esta possibilidade que pense o que seria arder num inferno destes.

No mito de Er (Rep. 621b) (PLATONE, Repubblica, Bompiani, Milano, 2019, pp. 1074-1075) há um rumor e um terremoto. Platão não o quer dizer, mas é o que diz: o céu não é um local absolutamente seguro. Não o queria dizer, mas disse-o. Não conhece um céu sem possibilidade de fissuras, senão de crepúsculo.

O paraíso platónico é contado desde a Renascença pelo menos, e pela filosofia clássica alemã de Oitocentos, como o reino da serenidade, da compleição, da satisfação de si, do saciamento. Tudo isto contra a inquietação cristã, essa insidiosa malandra que quando é contada por Pessoa é excitante, mas quando se vê cristã é sinal de espírito masoquista e indiferenciado.

Eis-me indiferenciado. Contra todas as possibilidades humanas, contra a imaginação humana, contra a insipidez humana que se julga aventurosa apenas por achar que supera não se sabe bem o quê, contra tudo isso, percebo que Platão mostra a sua grandeza que o leva até onde foi, e a sua grandeza meramente humana, quando mostra que não consegue conceber um paraíso que não seja defectivo, que não perca pessoas, que não tenha fissuras.

Foi o mais longe que um ser humano poderia ir com as suas forças. Buda calou, pelo menos em algumas das suas versões, Platão disse algo. E disse por isso algo mais que Buda. Falou das brechas do maior dos bens que conseguia imaginar, porque esse maior bem era imaginado por um ser humano, ou seja, com brechas. Foi até o mais longe que podia e viu um abismo, ao menos suspeita dele. E não o calou. Que os seus comentadores não o refiram é problema dos comentadores, não seu.

Porque quando vai ao fim de si mesmo o ser humano apenas encontra um espelho, e o retrato de si mesmo. Para ver algo mais tem de aceitar um encontro com alguém que partilha a sua natureza e a transcende ao mesmo tempo. Os paraísos que o ser humano consegue imaginar acabam sempre em pesadelos, ou pior ainda, anunciam-nos ao longe. Onde está Ardieu, o que farão os terremotos? Que anunciam os rumores? Os que esperam do paraíso uma consolação de remendo e não a verdade acabam na ilusão e no tremor. E esta ilusão só a revela Quem é em si mesmo a Verdade, mas essa será dita noutras  ocasiões.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

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Editorial

As democracias liberais em que vivemos não impõem objectivos sociais, nem quaisquer concepções normativas de bem. Estão ancoradas na ideia de direitos e liberdades individuais, recusando a imposição de valores absolutos ou de concepções pré-definidas de um bem comum. Sem negar a existência de uma Verdade última (isto é, sem negar a existência de um bem último ou comum), e nesse sentido afastando-se do puro niilismo, as nossas actuais democracias, assumindo a sua matriz liberal, negam ao Estado o direito de impor dogmaticamente uma concepção específica de bem. Ao invés, assentam no pressuposto de que o indivíduo pode, por si próprio e através de um processo racional de confronto de ideias, encontrar o caminho para a Verdade.

A pedra angular de todo este edifício demo-liberal, a condição mesma da sua existência, é um espaço público em que, de modo livre e incondicionado, sem preconceitos, sem dogmas e com uma atitude assumidamente tentativa, se confrontam teorias e concepções distintas, ideias e visões opostas, das quais, em última análise, acabarão por brotar valores que nos implicam com tudo o que tem a ver com a vida contemporânea, da filosofia ao sexo, da arte à política, da história à moral, da liberdade a Deus.

Como tal, este ‘marketplace of ideas’, à maneira de Stuart Mill, constitui uma das mais preciosas e poderosas garantias do respeito pela nossa liberdade individual. A sua construção e alimentação quotidianas são um direito, mas sobretudo uma responsabilidade de cada um de nós – que não pode ser inteiramente delegada nem em partidos políticos, nem em corporações, nem tão pouco no chamado sistema mediático.

Neste contexto, o «Geração de 60», enquanto espaço plural de debate que se deseja imodestamente sério e inteligente, é uma contribuição egoísta para a defesa da nossa própria liberdade.