quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Como reconhecer um filisteu

 

1.  1. Se um académico invoca a ciência junto do público é preciso ver o que anda a escrever nas universidades. Se diz que não existe «a verdade», «o referente» que a ciência mais não é que um ritual como qualquer outro, sem superioridade em relação a um ritual de selvagens, temos de o tratar como um selvagem e ignorar a autoridade que invoca e nega ao mesmo tempo consoante os destinatários.

2.    2.  Não dar a informação sobre os autores de crimes porque isso pode aumentar o racismo é sinal de que se acha que o povo é diminuído intelectualmente. São discípulos de Salazar: «se soubesses o que custa mandar querias obedecer toda a vida». Quem faz censura, quem quer censura defende a existência de uma polícia política.

3.  3. Os tiranos gregos sabiam como enfraquecer o poder dos povos que governavam. Importavam populações que diminuem o laço social entre os seus súbditos e assim enfraqueciam o poder de contestação dos povos. Mas exigir conhecimento de cultura grega a catedráticos é inglória esperança. Leram obras dos últimos cinquenta anos, porque o fiat lux nas suas pobres cabeças é de data tão recente quanto a sua nobreza. Quando peroram os que não sabem, só cativam quem não sabe o que eles ignoram.

4.   4. Quem acha que o povo não pode decidir algo ou não deve saber se algo está a dar-se um estatuto aristocrático. Havia um antigo critério entre a alta nobreza: se quiseres reconhecer a origem de alguém olha-lhe para o seu perfil e para as mãos. Quando se vir um perfil burgesso e mãos de talhante estamos apenas a ver um ressentido que gostava de ter nascido brâmane quando é de reles origem.

5.    5. Todas as sociedades multiculturais foram de violência cíclica. Assim em relação a cristãos e judeus na Pérsia sassânida, nos impérios árabe e otomano, e em relação aos judeus na Alexandria dos Ptolemeus e nos reinos cristãos. Querer multiculturalismo é aceitar violência cíclica.

6.    6. Todas as ciências sociais assentam num axioma: a recusa do sofisma da composição. O todo não é igual à soma das partes, há fenómenos colectivos. Quem acha válido o argumento «a maioria dos muçulmanos é boa gente» tem de ao mesmo tempo exigir o encerramento dos cursos de ciências sociais.

7.    7. Os que criticam o etnocentrismo são os mais etnocêntricos porque esquecem que ser outra cultura é ser efectivamente diferente. Dizer que todos querem ser livres é esquecer que em árabe e turco a palavra liberdade surge por influência cristã no século XIX, quando já no século XIII e XIV todos pensadores europeus nela falavam: Duns Scoto, São Tomás Marsílio de Pádua, etc.

8.    8. Se alguém disser que todas as culturas são iguais está a produzir uma afirmação universal empírica. Para o poder afirmar precisa de conhecer todas as culturas. Senão o que diz é arbitrário. Usemos os métodos dos matemáticos. Demos um contra-exemplo. A cultura alemã é infinitamente superior à turca. Quem ache o contrário use um telemóvel baseado na física e na matemática turca enquanto ouve as sinfonias turcas e os escritores e filósofos turcos. Está dado o contra-exemplo. Perante isto percebe-se que não é uma afirmação mas uma imposição, um mero exercício de poder.

9.     9. Da mesma forma, quem condena publicamente a pós-verdade - ou conceitos bárbaros quejandos que em bom vernáculo querem apenas dizer mentiras - tem de ser confrontado com obras que escreva para as faculdades dizendo que a verdade é conceito vazio, arbitrário, mera imposição de poder. Se diz que não existe a verdade não tem autoridade para condenar quem a nega.

1010. A quem se diz aberto a outras culturas tem de se perguntar porque não sabe nada da sua. Um europeu que não saiba latim, grego, matemática e teologia não percebe nada da Europa. Se quiser ir além do que não sabe apenas quer estender a sua ignorância

1111. Os primeiros que abandonaram o primado da História ou a desprezam e ignoram sem mais são também os primeiros a usar conceitos de síntese histórica como judaico-cristão patriarcado opressão das mulheres num eterno presente sem comparação informada no tempo e no espaço. Mais uma duplicidade: oráculos da História (de uma História congelada, ficcionada e estéril é certo) fora das universidades, descuram-na dentro delas.

1212. Esquerda e direita falam de valores mas nas universidades ensinam Foucault e Derrida que dizem que realidade são relações de poder. No fundo o que os fascina é o poder, mesmo se a sua língua apenas sabe falar de valores. Em todas as épocas os burros se babam com os tartufos.

1313. Poder exactamente. Os hindus acham as vacas sagradas e não fazem manifestações contra os MacDonalds. Os jinaístas são vegetarianos e não querem fechar matadouros. Os budistas acham graça a imagens de Buda gordos a sorrir. Há uma religião que se quer impor no espaço público não só exigindo a sua presença como impondo a ausência das outras. Imagine-se qual. A que pretende conquistar o poder e por isso gera o medo dos políticos de esquerda e direita. 

1414. São os que se dizem pós-modernos e negam essências que dizem que o islão é necessariamente tolerante e a Europa é necessariamente colonialista. Tanta contradição seria poética se não viesse de esfacelos.

 

Perguntam em que aspectos a nossa época será objecto de  risota pelos futuros? Acabei de dar alguns exemplos. Quando ouvimos mestres do positivismo e radicais socialistas do século XIX demonstrar a superioridade da raça branca achamos ridículo? Pois achemos desde já ridículas estas criaturas que nasceram para serem apenas fósseis. Daqui a cem anos este texto será mais visto como lúcido que as teses de doutoramento que apenas cacarejam que todos esperam ouvir. Deus tenha as sua almas em descanso, porque as suas inteligências os precederam na tumba.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

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segunda-feira, 28 de julho de 2025

O governo dos juízes

Como de costume, não estou em nenhum dos lados da questão. É tão boçal defender os tribunais a todo o transe como sem dó atacá-los.

 

A história é bem conhecida. Em Itália havia políticos criminosos, eram efectivamente corruptos. Mas os magistrados que os perseguiam eram tão verdadeiramente motivados politicamente. Não há santos de um lado ou do outro.

 

Não enuncio juízos morais. Apenas tento compreender. E o problema do governo dos juízes tem quatro aspectos que nunca são tratados em conjunto:

a)     O Estado de direito é contraditório com a democracia;

b)    Os juízes não são responsáveis pelos efeitos políticos, sociais e económicos e culturais das suas decisões;

c)     Por educação e por ofício têm uma visão do mundo limitada;

d)    O poder absoluto corrompe absolutamente.

 

O Estado de Direito é criação aristocrática. Nada tem de democrático. A Rule of Law é defendida desde a Idade Média, e é algo duvidoso que a Inglaterra dos séculos XV ou XVI fosse uma democracia. A República Romana assenta no direito. O Estado do direito é criação de repúblicas aristocráticas. O que visa, são os ditos checks and balances. Mas não é criação americana. O Estado de direito tenta resolver um problema: uma família aristocrática não pode impor-se às outras seja os Fabii, os Cornelli, os Iulii, seja em Veneza os Dandolo, os Faliero, seja em Génova…

 

Por isso, sempre que alguém pretende defender o Estado de direito, está a colocar-se ao lado de algo que nada tem de democrático. Se fossem a mesma coisa, ou implicação uma da outra, não seria necessário falar de «Estado de direito democrático» como faz a nossa pobre Constituição.

 

Os juízes são irresponsáveis. A intenção foi boa ao criar este estatuto. E continua a fazer algum sentido. Mas os juízes criam problemas sistemáticos para os quais não têm capacidade, nem técnica, nem política, nem jurídica para dar solução. A questão não é dos juízes, a questão é constitucional. Foi um sistema instituído que deu poderes a juízes que criam problemas sistemáticos, sem criar nenhuma válvula de segurança para os resolver.

 

Algumas constituições têm válvulas fracas como uma segunda votação por maioria reforçada no parlamento contra um entendimento de inconstitucionalidade dos juízes. Mas não basta. Se um juiz torna impossível expulsar estrangeiros, se torna impossível dar segurança às populações, o juiz lava daí as suas mãos, e os parlamentos não têm forma de compensar os problemas criados.

 

Não é papel dos juízes conduzir os destinos das sociedades. Não será acaso que o leitor se lembre do nome de Churchill mas não dos membros da Câmara dos Lordes da época, ou De Gaulle lhe diga algo mas o presidente do Conselho Constitucional francês lhe seja estranho. Tudo está no seu devido lugar. Uns são grandes homens, outros têm um papel ancilar na História. Desde sempre isso foi admitido. Falta daí retirar as consequências. Quem não pode dar grandes curas também não pode ter o poder de instalar grandes doenças.

 

Os juízes têm uma cultura limitada. Em geral não sabem História, nem latim, nem grego, nem matemática, nem física, nem teologia, nem filosofia… A lista do que ignoram é vasta. Na sua maioria são técnicos, apenas com conhecimentos técnicos. São incapazes de pensar nos efeitos de longo prazo do que fazem, pela mesma razão que ignoram o que é um ablativo absoluto, um semigrupo, ou a transubstanciação.

 

Não se trata de insultar alguém por não ter uma cultura universal. Mas a partir do momento em que tomam decisões que têm efeitos no muito longo prazo, em que as suas decisões afastam dezenas de milhares de anos da História genética da Europa, para quem nunca estudou genética das populações, nem nada sabe pensar em dezenas de milhares de anos, dar-lhe tal poder chama-se de estado de inocência. De Gaulle, que era maior que qualquer juiz de que há memória, quando queria saber as implicações do que fazia interrogava-se como se interroga toda a História da França. A maioria dos juízes riem-se desta imagem, mas deviam perguntar-se por que razão De Gaulle será lembrado pelos séculos e eles não.

 

O poder absoluto corrompe absolutamente. A ingenuidade foi a de achar que havia um tipo de poder sempre imaculado. O dos juízes. Esse e só esse poderia não ter limites, porque não teria nunca efeitos indesejáveis. É ingénuo, inumano no verdadeiro sentido. O poder judicial apenas foi inofensivo quando tinha fortes limites. E foi com a imagem dessa fraqueza quase crística que se aumentaram os seus poderes. Mas não são Nossos Senhores, nem isentos de pecado original. Triste ingenuidade.

 

Mitterrand, cujo passado fascista é bem conhecido, dizia que os tribunais destruíram a monarquia e iriam destruir a República. Seja. Quem usa palavras vindas do nazismo como «desconstrução» ou «responsabilidades históricas» viverá bem com isso.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

 

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quinta-feira, 17 de julho de 2025

Bishop Barron and the Three Theoretical Limits to René Girard

 

In an interesting interview, Bishop Barron speaks of Girard's greatness, a greatness that I do not deny.

https://youtu.be/ZOdPLrq5ViM?si=UUC3YCRlo5Vl4fgg

But this is to forget that all theoretical view is limited, and only a message identified with the messenger can be complete.

Girard's theories have three limits.

It is a theory without psychology. Girard had an almost physical repulsion for psychology. He was an anthropologist, and, even better, he had a philological background. I read societies as one reads a text. Searching for their meaning and object. That is why he never accepted the theories of the absence of a referent, but at the same time without investing in the intimate psychology of the text.

Not all desire is mimetic. Girard himself recognized it. There are autonomous desires. I'm hungry and thirsty, I need to breathe. Nothing is mimetic in this. But what I want to eat, when, this can have a mimetic inflection.

If all desire is mimetic, where does the first desire come from? Girard does not explain it. His theory is like a kind of Big Bang. After the Big Bang, it explains well what is going on. But not the first irruption of desire.

Where is the foundation of these three limits? Perhaps it is unique, and it comes from the absence of psychology. Reading society as a text is the work of a philologist. It has limits. But between a critical edition of Plato and a fanciful one there is a long distance. It's a good thing that someone brought philology to anthropology to end decades of cheap nominalisms.

A student at the École des Chartes, he showed us the power of philology to read the profound reality. But also its limits. To speak of people without speaking of soul is a fruitful deviation. But being a detour hides part of the road.

One day, comparing him with St. Irenaeus of Leo and with Jung, I hope to explain why.

 

Alexandre Brandão da Veiga

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segunda-feira, 31 de março de 2025

Um agnóstico encontra uma judia

 

 

 

 

Bem sei. Parece o início de uma anedota estereotipada. Mas não é.

 

Vi algures que Camus disse que, se a Europa se quisesse construir, precisaria de conhecer a obra de Simon Weil «L'Enraciment». Em suma, se se quiser uma Europa com alma.

 

Eis o agnóstico, eis a judia. Judia especial à porta do catolicismo. É verdade.

 

Que nos interessa este paralelo agnóstico? Observemos católicos sinceros, com prática generosa. Que dizem? Que a Europa são os direitos do homem, a democracia e a economia de mercado, que o centro do pensamento é a doutrina social da Igreja, que o importante é ser boa pessoa e a Santíssima Trindade é apenas um jogo intelectual, o importante é seguir Jesus.

 

Capturados pela excelsamente inepta teoria dos valores, coxinhos da ontologia, julgam que é impunemente que o seu estreito horizonte vital se estende à sua frente. Nas suas impunes mentes não aparece nem dissonância nem escândalo.

 

Mas são os cúmplices de uma Europa sem alma, aberta a definir-se de qualquer forma, em saldos ontológicos, sendo qualquer coisa desde que a coisa que seja permita a todos serem, menos nós que nada somos e se pretendermos ser é apenas sinal de intolerância em relação aos outros, os únicos que realmente são. Há mil maravilhosas culturas e nenhuma dela é europeia, como é evidente.

 

O católico bem intencionado mas turístico não percebe porque cada vez tem menos lugar numa Europa que é Estado de direito, democracia e direitos do homem. E não percebe que é tão coxo ontologicamente quanto os seus vizinhos laicos. Aceita definir-se sem alma, apenas instrumento jurídico e sentimental. O que interessa é ser boa pessoa, o que se identifica tontamente com seguir Jesus.

 

Quanto à ontologia, deixo-a para outra reflexão. O que importa agora é lembrar o que disse o agnóstico sobre a judia. Sem alma apenas se faz uma Europa vazia onde só está em casa quem a ela não pertence e por isso quer dela tomar posse.

 

Alexandre Brandão da Veiga

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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Porque os modernos odeiam as mulheres?

 


 

É muito curioso passar pelas referências dos ditos modernos e ver o que eles realmente pensam.

 

A grande democracia ateniense. Expulsa as mulheres do espaço público. Na aristocrática Esparta ou Lesbos as mulheres têm um mais forte papel.

 

A grande Renascença. É nela que as bruxas começam a ser perseguidas. Em que os juristas como Bodin defendem que deveria retornar o direito ao repúdio - só pelos homens, é evidente - onde nem depois de viúvas as mulheres podem fazer parte de corporações, em que se teoriza e impõe em grande parte a impossibilidade da mulher herdar património, poder feudal ou soberania.

 

As Luzes. Em que Voltaire diz que o grande mérito do confucionismo é o de ter sido a única religião que não foi seguida pelas mulheres, onde tantos (Boulainvilliers, Diderot, Montesquieu, Voltaire) defendem os haréns porque a poligamia é o regime natural - só para os homens, é evidente. Em que Rousseau entende (contra o papa Bento XIV que promove a carreira da professora de física de Bolonha Laura Bassi) que as mulheres são estúpidas demais para aprender ciência. E em que durante a Revolução Francesa, perante o protesto de Olympe de Gouges, que diz não haver apenas direitos do homem, mas também da mulher, a grande Assembleia Nacional decreta que o lugar da mulher é na cozinha.

 

A atracção pelo islão. Que enfia as mulheres em haréns. Que tem leis divinas que lhes mandam receber «barada» (tabefe, piparote, estaladão, murro?).

 

Se bem virmos, o traço comum de todas estas referências dos modernos é o de expulsar as mulheres do espaço público e retirar-lhe direitos e liberdades.

 

Quando uma mulher diz que deve muito às Luzes podemos assentir, que talvez seja verdade. Deve às Luzes, mas não à inteligência. Lady Montague é bom exemplo disso no século XVIII, quando acha os turcos fascinantes, mas não  percebe que só falam com ela por ser uma mulher europeia, e não súbdita do império otomano. E ao mesmo tempo conta que uma mulher encontrada morta na rua não  é entregue à família porque, tendo andado sempre velada, ninguém sabe quem ela é. Usar véus significa ser anónima para o mundo, mesmo quando cadáver.

 

Já sabemos, pois, qual a intenção dos ditos modernos. Expulsar as mulheres do espaço público. Salvo se não for a sua intenção, podem dizer em sua defesa. Talvez. Mas só numa condição: se forem ignorantes.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

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sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

A democracia da impotência

 

Não vou perder tempo a valorar cada um destes aspectos. Apenas os vou elencar e dizer da sua implicação. Desde o início dos anos 1990 que na Europa se diz que matérias fundamentais não dependem do voto popular. Mais ainda, que não há nada a fazer na matéria:

1) a imigração - são os tribunais sobretudo o tribunal europeu dos direitos do homem que a definem. Além do mais é uma inevitabilidade nada podemos fazer contra ela

2) a islamização - é algo de bom mas quando se referem aspectos negativos diz-se que temos de viver com ela, que temos de fazer acomodações razoáveis que não devemos fazer em relação a outras religiões. Além do mais é inevitável. 

3) a liberalização dos fluxos internacionais - é a OMC quem a regula. Além do mais é inevitável. 

4) as regras de protecção dos países - são definidas pelos tribunais em função dos direitos do homem. Além do mais é inevitável aceitar que cidadãos europeus sejam mortos. São meros faits divers, que não devem ser usados politicamente.

5) a política de defesa depende da NATO - É por isso inevitável passar por ela.

6) a integração da Europa - é tema complexo demais para os povos, dizem políticos onde se vê a origem reles e baixa. É inevitável. 

 

Perante isto, pergunta-se se os europeus podem decidir em algo relevante ou se estão reduzidos a ter as liberdades dos munícipes durante o império romano: enquadradas, limitadas, e historicamente irrelevantes.

A implicação é esta: quando se fala do desinteresse dos cidadãos em relação à política ou do voto de protesto são os mesmos que dizem que é tudo inevitável, e que portanto o voto é irrelevante, que se espantam com o desprezo das populações. Que se espantem diz apenas o pouco que são intelectualmente. Que sejam desprezados revela apenas que os povos perceberam que vieram do pouco.

 

Que alguém se diga democrata e ao mesmo tempo diga que o voto do povo apenas pode ter lugar em questões menores mostra que acha ser o exercício democrático destinado apenas a questões menores. E diz portanto quão menores é quem o diz.

 

Alexandre Brandão da Veiga

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segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

A grande escola de tradução de Toledo

 

  

Jornalistas, políticos e académicos celebram a grande escola de tradução de Toledo a que devemos a tradução em latim das obras gregas por via árabe e mostra a grande tolerância da Espanha das três religiões do tempo da dominação muçulmana. Nada há mais a pensar a propósito, e devemos a partir daqui apenas celebrar a «diversidade». 

 

Se isto basta a gente bastante a mim não basta.

 

Vejamos com atenção o argumento. A tradução em latim de obras árabes? E porque não a tradução em árabe de obras latinas? A resposta do plebeu é fácil de adivinhar. É que a civilização árabe era superior à latina. Seja. Daqui resultam duas conclusões: há civilizações superiores a outras, e uma civilização superior não tem de perder tempo a estudar as inferiores. 

 

Se o moderno aceita este argumento vivo bem com ele. Tomo dele bem nota para o usar noutras ocasiões.

 

O segundo aspecto tem a ver com a tradução das obras gregas. «É a tradutores de Toledo que devemos a tradução de obras gregas». Isto esquece três coisas 

1)    1) Há continuidade de cultura grega no Sul da Itália 

2)    2) Foi o islão que partiu o Mediterrâneo e dificultou a ligação entre a cultura grega e a latina 

3)   3) Os tradutores não eram exclusivamente muçulmanos, mas cristãos e judeus participam activamente nesta tradução 

 

Mas falta um elemento mais divertido. É que esta escola de tradução de Toledo começa a ser realmente importante a partir do século XII. Ora Toledo passa a ser cristã desde 1085. Ou seja, o dito ambiente de tolerância e troca cultural aberto é... cristão

 

Caem de surpresa os jornalistas, políticos e académicos? Não. Os factos são-lhes incomodativos. Já decidiram que o islão é tolerante, que contribui para a riqueza cultural da Europa e por isso em desespero irão um dia falar da grande escola de tradução de Albarraque de Baixo sob dominação muçulmana, mesmo que este nunca tenha tido escola de tradução, mesmo que nunca tenha tido dominação muçulmana e mesmo que em boa verdade Albarraque de Baixo nunca tenha existido. 

 

Alexandre Brandão da Veiga

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terça-feira, 10 de dezembro de 2024

São Tomás de Aquino em turismo

Tenho andado em estudo do «De Veritate» de São Tomás de Aquino. Por razões múltiplas, o meu estudo da filosofia medieval foi intermitente, não importa aqui quais. Mas, sempre que a ela volto, percebo até que ponto a nossa época macaqueia a filosofia medieval sem a conhecer.

 

Os lados da questão são conhecidos. De um lado, os que vêem São Tomás de Aquino como um iluminado e nada mais há que fazer senão seguir as suas fórmulas. Deste lado favorável outros insistem na dimensão existencial do pensamento tomista. Esta segunda versão só espanta quem faz a destrinça entre a dimensão conceptual e a existencial na vida, o que quer dizer que as têm ambas pobres.

 

De outro lado, os que dizem que o pobre coitado do São Tomás não conseguia destrinçar a filosofia da teologia, ou então oscilam a acusá-lo do maior obscurantismo, do enfado ou ainda de, apesar de lhe reconhecer a inteligência, ter tido o problema de ter nascido antes de nós e por isso não ser banhado da mesma luz redentora que nós (uma visão religiosa que não diz o seu nome...).

 

Da minha parte vou visitá-lo como turista, ou seja, de forma fresca, mas dando valor a coisas que os especialistas esquecem e os ignorantes, coerentes como são, ignoram.

 

Pertenço a uma geração que foi obrigada a nadar na palavra dialéctica, tanto quanto a desconhecia. Era um adjectivo necessário para passar em exames, e como todas as gerações colectivamente são no fundo submissas, a imensa maioria dos meus colegas a usavam como uma palavra mágica. Tinha um efeito: permitia passar de ano. E outro: para os mais afoitos permitia ter boas notas.

 

Mas a prática da dialéctica implica ter presentes ao mesmo tempo várias vozes, substantivas, viventes, opostas. Para vidas espirituais suportadas por escasso caudal, que esforço inglório ficcionar que a água pode irrigar vastos campos.

 

Ser aberto aos outros é um dos mantras enfadonhos da nossa época. Aberto aos outros é geralmente quem de qualquer forma não tem estrutura. Tão aberto que tudo o que entra sai da mesma forma. Da minha parte prefiro os que abrem os outros, os que mostram nos outros o que nem eles mesmos são capazes de mostrar. São Tomás despe sem pudor as ideias dos outros, poem-nas a nu. Mostra o que são enunciando o que estava implícito. Mas mostra o que são, não menos por mostrar no seu conjunto o que diriam se tivessem capacidade de ter um pensamento sistemático. Se São Tomás mente é por tornar os adversários mais inteligentes do que são.

 

Diálogo? Encontramo-lo sob o ponto de vista teatral em Platão, dizem os antigos que não manifestamente inferior em Aristóteles. Mas dialéctica sem noção de drama não existe, de qualquer forma. Antífonas, responsos em liturgia podem ser uma forma velada de teatro. São Tomás tem mais dialéctica em si que um mero observador da dialéctica, como tantos depois do século XIX. Se a época gostasse realmente de dialéctica teria forçosamente de gostar do Doutor Angélico.

 

Também incensamos os heterónimos. Pessoa tê-los-ia inventado, diz uma erudição provinciana. Bem antes de Pessoa, Kierkegaard, para quem o conheça. A questão é que em Pessoa como em Joyce participa tudo de uma imensa falta de sentido de humor, ou seja, de unidade. Em Kierkegaard esse sentido cómico está sempre presente. É talvez um dos maiores pensadores do cómico que já existiu. Se se pode dar ao luxo da comicidade é porque é profundamente cristão, e percebe por isso o que o cristianismo tem de cómico. Um Deus esvaziado e entregue por amor aos homens é visão cómica da realidade e por isso mesmo intrigante.

 

São Tomás não precisa de teorizar o cómico de modo tão intenso. Vive numa época em que o absurdo de um Deus sacrificado pelos homens é duplamente evidente: no seu absurdo e na sua verdade. Não precisa lembrar do que ninguém esqueceu. Por isso, não precisa de heterónimos. Faz tudo como se os tivesse, coloca várias vozes a falar ao mesmo tempo, porque sabe que a alma é complexa e não perde por esse facto a sua unidade. Não precisa, nem de invocar o cómico, nem de o esquecer. Pertence a um tempo que faz catedrais obscenas e peças satíricas. A sua época vive bem com o sentido de humor e o de unidade. Sabe que são só um.

 

Que a sua capacidade de criar diálogos seja real não me espanta. É um místico e um poeta. São sempre os pensadores mais profundos, o que se despem desta sua riqueza e se podem dar ao luxo de ser realistas e prosaicos. Os que o são por inevitabilidade nada mais podem despir, salvo se nos quiserem dar desagrado.

 

O que importa é que um ateu que queira ser sofisticado apenas teria de compilar as teses que São Tomás enuncia para as rebater, sem ter em conta que são destruídas pelo santo. Os actuais ateus são maus citadores do Doutor Comum. Usam apenas alguns dos seus argumentos quando teriam uma muito maior escolha e poderiam dar uma imagem de sofisticação maior que a que têm. Estreitos e amputados, querem fazer um mundo à imagem dos seus limites intelectuais. É o que chamam de um mundo melhor. Melhor para eles porque mais à sua medida e ao seu conforto.

 

Entendamo-nos. Não contesto a honestidade de alguns ateus, nem a profundidade das suas objecções. Lutam contra um cristianismo paroquial. Mas ignoram que, em certo sentido, luto contra ele bem mais eu que eles. A oposição não é a entre os inteligentes e os estúpidos. Nem sempre. Muitas vezes temos de perceber que objecções inteligentes são curtas e insuficientes e que muito deixam por aprofundar. Um ateu não preguiçoso carece da leitura de São Tomás. Para sentir uma repulsa bem legítima, porque sem o saber lhe seria purgativa.

 

As melhores anedotas sobre a Igreja Católica vi-as contadas por católicos. Os ateus riem-se das religiões, sobretudo da única que vêem como religião, a cristã. Mas raramente vi um ateu a rir-se do seu ateísmo, mostrando até que ponto a sua posição pode ser ridícula. É esse estreitamento da vida que os impede de defender em toda a sua glória o ateísmo. Teriam para isso de sofrer com a leitura de São Tomás. E isso excede as suas forças espirituais. Por isso, quando tentam colocar-se numa posição diversa da sua, começam pelo heterónimo sem humor e acabam sem posição nenhuma.

 

O actual ateísmo é uma nota de pé de página da obra tomista. Em vez de ter um pensamento sem limites, procura uma via redentora em dois ou três tópicos. Congratula-se com a escuridão desde que esta seja democrática. Se venho do esterco todos têm de vir. Não foi assim que começou o ateísmo. De início herdou o ideal aristocrático da grandeza. Mas não percebeu que não o conseguiria suster. O seu padrão é democrático. Todos vêm do lixo, no máximo podem almejar ao conforto, não ao heroísmo. O actual ateísmo revela-se a si mesmo como nudez chã.

 

Sem mística, sem poesia, acaba por ser sem pensamento. Obcecado em ter razão, em que tudo é lixo, quer de tudo fazer lixo para se sentir confirmado. Sem dialéctica, negando-se a ouvir outras vozes, outras opiniões. Cego, surdo e mudo, como um deus Shiva vive de destruição e identifica-se com o seu falo, já não biológico, mas simbólico. Porque para ele a biologia é apenas sinal de ontologia, logo, de opressão. A biologia o fez, a biologia o desfaz. Parodiando a redenção, é filosofia de imitação, própria para uma pequena burguesia habituada a viver de sucedâneos. E por cima destas ruínas eleva-se São Tomás, que desde a origem tinha razão, porque, ao menos ele, ouviu a razão dos outros.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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terça-feira, 15 de outubro de 2024

Os católicos são ridículos?

 

 


 

Sim. Quando são os idiotas úteis dos comunistas nos anos de 1939, dos maoistas dos anos de 1970 ou actualmente dos maometanos.

 

Sim. Quando falam em valores e solidariedade, conceitos, um burguês e o segundo aburguesado, em vez de falarem de virtudes e caridade. Conceitos externos e não como os conceitos cristãos e pagãos, sinais de irradiação de energia interior alimentada pelo Espírito.

 

Sim, quando dizem que o cristianismo é sobretudo uma moral, ignorando Santo Agostinho que dizia ama, et fac quod uis, ama e faz o seu que quiseres. Julgam que Nosso Senhor veio a esta Terra dar bons modos burgueses.

 

Sim. Quando dizem que são cristãos mas não dogmáticos. Ser católico é ser dogmático, o que todos sabem impediu descartes galileu e pascal de pensar.

 

Sim, quando de novo acham que o cristianismo é ser bonzinho e nunca falam de mística, de dogmática, de eclesiologia, de escatologia. Quando dizem que o que interessa é seguir Jesus e não lhes interessa a Santíssima Trindade. Religião sem conteúdo nem pensamento, território apenas de bons sentimentos, não se espantem de serem chamados de estúpidos.

 

Sim, quando acham que a democracia e os direitos do homem são a realização mais perfeita do cristianismo. E assim caem em duas heresias ao mesmo tempo. Idolatras de um regime político, não acreditam na comunhão dos santos, mesmo que a confessem da ponta dos lábios. A comunhão dos santos implica que a vida dos nossos antepassados é tão válida quanto a nossa, de igual valor os seus sofrimentos, ideias e limites. Não. Para o católico moderno ter anestesia no dentista, telemóvel e a democracia torna-o superior a São Tomás de Aquino e Santo Irineu de Leão, mesmo que saiba no íntimo que nem uma das suas palavras vá ser lembrada quando morrer.

 

Sim. Quando acham estar fora da História, protegidos pela rede de segurança feita pelos seus antepassados, rede que vêem como um macaco vê a natureza. Esteve sempre lá, não é preciso ser defendida.

 

Sim, quando dizem ignorar o nome dos seus antepassados que por mil e quatrocentos anos deram a sua vida para libertar a Europa do islão.

 

Dizem que não sabem quem são os seus antepassados e que a sua vida era lixo. E que se morreram isso é irrelevante. Contemplemo-los. Têm razão. Olhando para eles vemos que vêm de antepassados anónimos e sem valor. É a sua justiça que os condena.

 

Sim e sim. Porque compete aos católicos martirizar os católicos e mostrar-lhe que vivem sonâmbulos. É melhor ser acordado por mão exigente, mas amiga que por piratas que nos chamam para mercados de escravos.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 21 de junho de 2024

Feitos à imagem de Deus

 

Assim é. Lá temos mais um que se acha inteligente por recusar imagens antropomórficas de Deus. A nossa época dá felicidade a muitos porque lhes dá muitas ocasiões de se sentirem inteligentes, sobretudo mais inteligentes que os outros. O que é um sinal de alarme, podendo indicar que a verdade é a inversa.

 

O tópico de Xenófanes aparece entre os que têm propensões mais intelectuais. Xenófanes dizia que os gregos deram forma humana aos deuses, mas não perceberam que se os animais tivessem deuses dariam forma animal aos deuses. Xenófanes teria as suas qualidades, mas era algo provinciano. Porque se esqueceu que os egípcios eram humanos e deram aos seus deuses formas... de animais.

 

Também os que brandem o argumento do antropomorfismo mostram assim o seu provincianismo. Nem sempre fazemos os deuses à nossa imagem. E por isso é preciso pensar duas vezes antes de acusar a teologia de antropomorfismo. Não é pelo facto de os polacos venerarem uma Virgem Negra que projectam na santidade o que são. Para quem nunca viu um polaco seria bom espreitar alguns para se perceber a ironia.

 

O problema é que o argumento de antropomorfismo deixa satisfeito quem sente ter capacidade de abstracção e não acredita por isso num Deus velho com barbas brancas. Capacidade de abstracção de jornalista, entenda-se, e desde a metade do século XIX a de alguns biólogos. Não são o pináculo na matéria, não aconselharia como modelo.

 

O homem não faz Deus automaticamente à sua imagem. Prova são os deuses teriomórficos, os deuses de formas difusas, híbridas, ou em forma de bétilo ou planta. Os gregos tinham deuses antropomórficos os árabes adoravam calhaus. Deuses mais abstractos? Seja. Não é por isso que os gregos eram incapazes de poesia ou criação racional. Alguém que me aponte um teorema beduíno ou uma epopeia sarracena... Tanto os gregos como os indianos, que têm ambos deuses antropomórficos, produziram arte, literatura e matemática como mais nenhum povo na Antiguidade. Talvez fosse altura de o rapaz com mentalidade de jornalista começar a pensar... Se lhe for possível.

 

O problema é exactamente o inverso. Quando o homem quer pensar num Deus mais complexo o risco é o de cair no antropomorfismo. O cidadão comum da nossa época, que se sente sofisticado por só admitir uma visão abstracta de Deus, o que vê ele? Uma coisa difusa, de fronteiras indefinidas, confusa. Porquê? Porque para ele são assim as abstracções. Uma antropóloga que conheci na adolescência disse-me um dia: para mim as ideias são coisas mortas. Ao que eu lhe respondi: sim, menina, na tua cabeça.

 

São os mesmos que dizem ter uma vivência carnal da vida que só admitem a hipótese de um Deus abstracto. Ou seja, morto, sem viço. Como as suas abstracções. A sua vida não é contraditória. É só tonta. Por isso, não percebem que são os povos mais sofisticados que procuram uma imagem viva e pessoal do Deus. Platão chamava-o de o Vivente e Pai. E quanto a ideias abstractas tenho mais confiança em Platão que num jornalista americano. 

 

Santo Irineu de Leão merecia que se falasse muito mais dele. Mas sendo telegráfico, diria que percebeu algo muito simples: que todas as heresias, e em boa todas as religiões falsas são projecções. O homem projecta-se na divindade, quere-a à sua imagem.

 

Não que faça deuses antropomórficos sempre. Mas quer deuses que aceitem a vingança, mesmo que com limites. Que odeiem os descrentes, condenem os que não nos agradam. Mais importante que a sua imagem aparente são as suas motivações.

 

Por isso, torna-se impossível ao ser humano conseguir a suprema conquista espiritual que é a de um Deus pessoal, apenas acessível aos povos mais sofisticados, sem cair ao mesmo tempo no antropomorfismo. Não tanto o do Deus velho de barbas, mas de um Deus que odeia e quer vingança.

 

Os sofisticados da nossa época têm dificuldades grandes e não percebem que z verdade cristã é exactamente a inversa. Não a de um Deus à imagem do homem, mas de um homem à imagem de Deus. O que isto implica? Que se esvazie de vez das suas projecções e seja ao mesmo tempo capaz de se confrontar com um Deus pessoal. Que tenha a suprema capacidade de abstracção de perceber a vida das suas ideias e que essa vida não vem de si. Mas essa capacidade de abstracção o transeunte jornalístico da nossa época não o tem. Cansa-se depressa. E depois de pensar a sua pequena abstracção senta-se. Não viu grande coisa. É evidente. É a si mesmo que se viu.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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sexta-feira, 17 de maio de 2024

Dançando em pares

 

O velho Sachs fez já há muito tempo uma observação que hoje em dia anda esquecida. A Europa foi a única cultura em que o homem e a mulher dançam em pares. Nas culturas não europeias como a turca, a árabe e muitas outras orientais os homens nunca dançam com as mulheres. Noutras há grupos de homens e grupos de mulheres que dançam cada um de seu lado. Noutras ainda homens e mulheres dançam em conjunto, mas nunca formam pares.

 

Na Europa temos danças de conjunto em que se formam pares ou danças de pares, um homem e uma mulher.

 

A primeira verificação é civilizacional. A única civilização que desde há milénios pratica a monogamia e a teoriza é também a única que cria pares na dança. Este é um símbolo e um reforço da monogamia.

 

A segunda é vivencial. Quem já dançou em pares como eu sabe a experiência de dois corpos que falam entre si. O facto de haver regras não impede a espontaneidade nem a variabilidade. Bem pelo contrário é a única situação em que um homem e uma mulher fora do sexo podem ter uma comunhão corporal profunda e fora do casamento a podem ter enquadrada em liberdade. É o oposto da violação e da prostituição.

 

A dança de pares na Europa seja em puros pares ou pares gerados por um grupo não é acto de brutos ou experiência caótica. Está codificada. Há boas razões para isso. Os corpos estão sujeitos à gravidade e à inércia. O mais natural é que sejam trôpegos, deselegantes. Na natureza raras vezes se vê elegância, salvo no predador que caça e na presa quando dele foge. A elegância é sempre dramática na perspectiva da biologia, e sempre improvável na da física.

 

As danças de salão nas suas várias versões na História europeia mas também o ballet são a luta contra estas desgraças. Ter corpo sem ser desajeitado e forçado pelo peso, ter harmonia sem desafio de morte é tudo menos evidente.

 

Ora o século XX trouxe a tragédia não apenas nos campos de batalha mas também na dança. Quis superar a dança tradicional. O que fez? Umas vezes aboliu os pares, voltando a criar conjuntos ou solos, retirou outras os códigos. Outras vezes criou novos códigos que se resumem a duas ideias. O corpo tem peso, o corpo deixa de ser humano. Onde a dança clássica impõe a elegância dos pés das mãos do corpo surge agora o trejeito, o espasmo, o brusco, ou o diluído. Onde havia humanidade há agora a máquina, com os seus movimentos repetitivos, angulosos.

 

No fundo tudo se funde num só princípio. Desde os anos 60 os pares dissolvem-se, e um homem e uma mulher se dançam aparentemente juntos apenas se ligam pelo olhar. Os seus corpos não estão unidos. E se se tocam cada um pretende tomar a iniciativa. Dançar junto significa macaquear o outro ou dele se destacar. Já não ter um fraseado comum.

 

Na imagem pequeno burguesa do Maio de 68 tudo vale para fugir ao humano. Imitar as pedras, as máquinas, os animais, os elementos da natureza tudo é melhor que aceitar o seu destino humano menor. Prefere dançar como um porco, usando palavras como mística ou revolução. Tudo é válido desde que possa deixar de ser o que é. Dança para se desencontrar, com a mesma finalidade escreve teoriza ou ensina. Num mundo em que andam todos desencontrados sente-se menos confrontado com a sua menoridade. Todos decaem. Ou seja, todos se aproximam da sua origem.

 

É evidente que é fácil criticar o ballet clássico e dizer que é ridículo. Por vezes a música não é da maior profundidade nem o seu roteiro. Curioso critério, sublime exigência. Muitas obras-primas são feitas de partes medíocres. Os Lieder de Schubert assentam em grande parte em poesias medíocres e isso em nada os estraga. Mozart fez a música mais sublime numa história estúpida como a da Flauta Mágica e estragou sob o ponto de vista dramático o Don Giovanni com a última cena moralista sem em nada ter estragado a sua beleza musical.

 

Da mesma forma no ballet clássico histórias podem ser tontas, algumas músicas delicodoces sem estragar em nada a beleza da dança. O contemporâneo não vive sem a técnica do clássico, é lugar-comum. Mas não vive igualmente sem o seu sentido de arte. Seja opondo-se-lhe, seja mimando-o. A dança popular não é menos rotineira e apenas consegue ser mais grosseira. Gente ordinária abana a anca para chocar o burguês: a sua família. Porque gente com outro nascimento boceja e não se choca.

 

Um fulano vestido com umas meias coladas à sua pele dançando com uma mulher usando um tutu que parece um folhado... Nada mais simples de ser criticado, nada mais evidente objecto de chacota. Pode-se dizer o mesmo de uma orquestra, conjunto de criaturas sentadas à espera de ordens de maestro, gente que inquina as mãos e o nariz com cheiros de tinta enquanto pintam quadros, os que arriscam uma doença respiratória por ciselarem a pedra. Tanto na vida humana é ridículo... Basta pensar num pai babado enquanto olha para a sua filha recém-nascida e viscosa. Se o critério para recusar algo for o ridículo aparente que se proíba o sexo, que raras vezes é artístico à vista.

 

Um homem e uma mulher que dançam podem obedecer a regras, pode haver um a conduzir e outro a sugerir. Mas quem teve essa experiência sabe que a sincronia dos corpos em que se adivinha a vontade do outro é uma das vivências mais libertadoras que um ser humano pode ter. Os pés de chumbo, os imitadores de macacos e máquinas, os cultores da grosseria não podem saber que vida é esta. Não lhes foi dada, fazem por isso a apologia da que lhes é possível. A vida que não viveram tem dois nomes: livre e digna.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

 

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Editorial

As democracias liberais em que vivemos não impõem objectivos sociais, nem quaisquer concepções normativas de bem. Estão ancoradas na ideia de direitos e liberdades individuais, recusando a imposição de valores absolutos ou de concepções pré-definidas de um bem comum. Sem negar a existência de uma Verdade última (isto é, sem negar a existência de um bem último ou comum), e nesse sentido afastando-se do puro niilismo, as nossas actuais democracias, assumindo a sua matriz liberal, negam ao Estado o direito de impor dogmaticamente uma concepção específica de bem. Ao invés, assentam no pressuposto de que o indivíduo pode, por si próprio e através de um processo racional de confronto de ideias, encontrar o caminho para a Verdade.

A pedra angular de todo este edifício demo-liberal, a condição mesma da sua existência, é um espaço público em que, de modo livre e incondicionado, sem preconceitos, sem dogmas e com uma atitude assumidamente tentativa, se confrontam teorias e concepções distintas, ideias e visões opostas, das quais, em última análise, acabarão por brotar valores que nos implicam com tudo o que tem a ver com a vida contemporânea, da filosofia ao sexo, da arte à política, da história à moral, da liberdade a Deus.

Como tal, este ‘marketplace of ideas’, à maneira de Stuart Mill, constitui uma das mais preciosas e poderosas garantias do respeito pela nossa liberdade individual. A sua construção e alimentação quotidianas são um direito, mas sobretudo uma responsabilidade de cada um de nós – que não pode ser inteiramente delegada nem em partidos políticos, nem em corporações, nem tão pouco no chamado sistema mediático.

Neste contexto, o «Geração de 60», enquanto espaço plural de debate que se deseja imodestamente sério e inteligente, é uma contribuição egoísta para a defesa da nossa própria liberdade.